quarta-feira, 26 de maio de 2010

Debate entre Webb Keane e Martin Holbraad

On Multiple Ontologies and the Temporality of Things


Muito interessante o debate entre Webb Keane, uma referência em estudos semióticos acerca de objetos e materialidades, e Martin Holbraad, também envolvido na perspectiva de que a antropologia poderia ser orientada (empirica e teoricamente) por objetos materiais.
Martin Holbraad é um dos editores do livro Thinking Through Things e ao comentar o texto de Keane levanta questões deveras fundamentais para uma antropologia interessada no estudo da materialidade e dos objetos.

Confira o debate no blog Material World, mantido por Daniel Miller.

A querela das terras de quilombos

Vale a pena conferir o texto de Manuela Carneiro da Cunha.

A querela das terras de quilombos

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA


Quem está limitando o acesso às terras a "quem quer produzir" não são os quilombolas, e sim a parte mais atrasada da pecuária


Está de volta, como de hábito às vésperas de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, uma velha campanha. Segundo seus promotores, as terras que são destinadas a quilombos (desta feita, é delas que o Supremo vai tratar), a índios e a unidades de conservação diminuiriam ainda mais o já pequeno território brasileiro acessível a "quem quer produzir".
Como, entre essas terras subtraídas a "quem quer produzir", são também contabilizadas as cidades, conclui-se que esses promotores desejam transformar o Brasil numa grande fazenda. Voltaríamos às capitanias hereditárias?
Mas olhemos mais de perto. Analisando as áreas de conservação ambiental e as áreas indígenas, o Ipea, da Secretaria de Assuntos Estratégicos, publicou, em dezembro de 2009, um estudo cujo título já diz tudo: chama-se "Unidades de Conservação e o Falso Dilema entre Conservação e Desenvolvimento".
E, para quem acha que há áreas de conservação demais no Brasil, lembra que percentualmente à nossa parte do bioma floresta amazônica, estamos bem atrás de Venezuela, Colômbia, Equador e Bolívia.
Segundo a análise que o IBGE faz do último Censo Agropecuário, a concentração de terras pouco se alterou entre 1985 e 2006: a pequena propriedade rural, menor do que 10 hectares, que representa quase metade do número de propriedades, ocupa 2,7% da área total de estabelecimentos rurais.
No outro extremo, a grande propriedade, aquela acima de mil hectares, ocupa 43%. Se esta é mais rentável no absoluto, a pequena propriedade é mais racional no uso da terra e proporciona uma melhor distribuição de renda.
Não só também "produz", mas sabe-se que ela é quem garante a segurança alimentar no Brasil.
Mas vejamos como se distribui, quanto a terras, o agronegócio.
O professor Gerd Sparovek, da Escola Superior de Agricultura da USP, de Piracicaba, desenvolveu pesquisas com colaboradores brasileiros e suecos, que serviram para que a associação brasileira da indústria da cana-de-açúcar defendesse, diante da União Europeia, a compatibilidade da expansão do cultivo da cana com os compromissos ambientais do país.
Em um artigo publicado em 2007, Sparovek e seus colaboradores relembram que quem se apropria da maior parte das terras cultiváveis brasileiras é a pecuária.
Um estudo de 2003, de Cardille e Foley, mostrou que, entre 1980 e 1995, dos 25 milhões de hectares deflorestados, 54% tinham sido convertidos em pastos, e só 7% serviam para cultivo. Em 1995, a pecuária ocupava 73% do espaço agrícola.
A criação de gado bovino, essa grande responsável pelo desmatamento na Amazônia, continua sendo feita de maneira extensiva, com uma densidade inferior a um boi por hectare!
Segundo o IBGE, o gado confinado ou semiconfinado não passava de 2,5% do total de gado em 2005.
O subsídio implícito da grilagem de milhões de hectares na Amazônia torna mais rentável, como mostrou o Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), a criação extensiva do que o confinamento ou semiconfinamento. Mas rentável não equivale a racional.
Quem está limitando o acesso às terras a "quem quer produzir" não são, portanto, os índios, os quilombolas, as unidades de conservação e a pequena propriedade rural, e sim a parte tecnologicamente mais atrasada e predatória da pecuária.
O resto é conversa para boi dormir, ou melhor, para influenciar o Supremo.


MANUELA CARNEIRO DA CUNHA é antropóloga, professora titular aposentada da Universidade de São Paulo e da Universidade de Chicago. É membro da Academia Brasileira de Ciências.

sábado, 15 de maio de 2010

Sobre pessoas e coisas: Entrevista com Daniel Miller



Na última edição da Revista de Antropologia (volume 52 n1) foi publicada uma entrevista com Daniel Miller, realizada por mim e por Catarina Vianna em Setembro de 2009 na UCL (Univerity College London). A revista pode ser adquirida através do departamento de antropologia da Universidade de São Paulo.

Realizar essa entrevista foi uma emoção dupla, em primeiro lugar pude conhecer pessoalmente um antropólogo cujo trabalho admiro e prezo, além de utilizar seus livros e textos em diversas das reflexões que tenho feito acerca do consumo de bens e da cultura material. Por outro lado, foi uma satisfação muito grande realizá-la em conjunto com a Catarina, uma pessoa e pesquisadora séria, dedicada e que também tem a minha profunda admiração.
Assim, recomendo à todos essa interessante entrevista, cujo objetivo foi apresentar um pouco mais detalhadamente as pesquisas que vem realizando Miller, mas, também, cuja pretensão foi não esconder seu lado pessoal e descontraído.

Atualização: A entrevista pode ser lida na íntegra AQUI NO JSTOR

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Nota da Comissão de Assuntos Indígenas-CAI/ABA sobre reportagem da Revista VEJA

Dando continuidade a reflexão (e ação) que precisamos empreender, divulgo a nota da comissão de assuntos indígenas:

Nota da Comissão de Assuntos Indígenas-CAI/ABA


A reportagem divulgada pelo último número da revista Veja, provocativamente intitulada “Farra da Antropologia oportunista”, acarretou uma ampla e profunda indignação entre os antropólogos, especialmente aqueles que pesquisam e trabalham com temas relacionados aos povos indígenas. Dados quantitativos inteiramente equivocados e fantasiosos (como o de que menos de 10% das terras estariam livres para usos econômicos, pois 90% estariam em mãos de indígenas, quilombolas e unidades ambientais!!!) conjugam-se à sistemática deformação da atuação dos antropólogos em processos administrativos e jurídicos relativos a definição de terras indígenas.
Afirmações como a de que laudos e perícias seriam encomendados pela FUNAI a antropólogos das ONGs e pagos em função do número de indígenas e terras “identificadas” (!) são obviamente falsas e irresponsáveis. As perícias são contratações realizadas pelos juízes visando subsidiar técnica e cientificamente os casos em exame, como quaisquer out ras perícias usuais em procedimentos legais. Para isto o juiz seleciona currículos e se apóia na experiência da PGR e em consultas a ABA para a indicação de profissionais habilitados. Quando a FUNAI seleciona antropólogos para trabalhos antropológicos o faz seguindo os procedimentos e cautelas da administração pública. Os profissionais que realizam tais tarefas foram todos formados e treinados nas universidades e programas de pós-graduação existentes no país, como parte integrante do sistema brasileiro de ciência e tecnologia. A imagem que a reportagem tenta criar da política indigenista como uma verdadeira terra de ninguém, ao sabor do arbítrio e das negociatas, é um absurdo completo e tem apenas por finalidade deslegitimar o direito de coletividades anteriormente subalternizadas e marginalizadas.
Não há qualquer esforço em ser analítico, em ouvir os argumentos dos que ali foram violentamente criticados e ridicularizados. A maneira insultuosa com que são referidas diver sas lideranças indígenas e quilombolas, bem como truncadas as suas declarações, também surpreende e causa revolta. Subtítulos como “os novos canibais”, “macumbeiros de cocar”, “teatrinho na praia”, “made in Paraguai”, “os carambolas”, explicitam o desprezo e o preconceito com que foram tratadas tais pessoas. Enquanto nas criticas aos antropólogos raramente são mencionados nomes (possivelmente para não gerar demandas por direito de resposta), para os indígenas o tratamento ultrajante é na maioria das vezes individualizado e a pessoa agredida abertamente identificada. Algumas vezes até isto vem acompanhado de foto.
A linguagem utilizada é unicamente acusatória, servindo-se extensamente da chacota, da difamação e do desrespeito. As diversas situações abordadas foram tratadas com extrema superficialidade, as descrições de fatos assim como a colocação de adjetivos ocorreram sempre de modo totalmente genérico e descontextualizado, sem qualquer indicação de fontes. Um dos antropólogos citado como supostamente endossando o ponto de vista dos autores da reportagem afirmou taxativamente que não concorda e jamais disse o que a revista lhe atribuiu, considerando a matéria “repugnante”. O outro, que foi presidente da FUNAI por 4 anos, critica duramente a matéria e destaca igualmente que a citação dele feita corresponde a “uma frase impronunciada” e de “sentido desvirtuante” de sua própria visão. Como comenta ironicamente o jornalista Luciano Martins Costa, na edição de 03-05-2010 do Observatório da Imprensa, “Veja acaba de inventar a reserva de frases manipuladas”.
A agressão sofrida pelos antropólogos não é de maneira alguma nova nem os personagens envolvidos são desconhecidos. Um breve sobrevôo dos últimos anos evidencia isto. O antropólogo Stephen Baines em 2006 concedeu uma longa entrevista a Veja sobre os índios Waimiri-Atroari, população sobre a qual escrevera anos antes sua tese de doutoramento. A matéria não saiu, mas poucos meses depois, uma reportagem intitulada “Os Falsos Índios”, publicada em 29 de março de 2006, defendendo claramente os interesses das grandes mineradoras e empresas hidroelétricas em terras indígenas, inverteu de maneira grosseira as declarações do antropólogo (pg. 87). Apesar dos insistentes pedidos do antropólogo para retificação, sua carta de esclarecimento jamais foi publicada pela revista. O autor da entrevista não publicada e da reportagem era o Sr. Leonardo Coutinho, um dos autores da matéria divulgada na última semana pelo mesmo meio de comunicação.
Em 14-03-2007, na edição 1999, entre as pgs. 56 e 58, uma nova invectiva contra os indígenas foi realizada pela Veja, agora visando o povo Guarani e tendo como título “Made in Paraguai - A FUNAI tenta demarcar área de Santa Catarina para índios paraguaios, enquanto os do Brasil morrem de fome". O autor era José Edward, parceiro de Leonardo Coutinho, na matéria citada no parágrafo anterior. Curiosamente um subtítulo foi repetido na matéria da semana passada - "Made In Paraguay”. O então presidente da ABA, Luis Roberto Cardoso de Oliveira, solicitou o direito de resposta e encaminhou um texto à revista, que nem sequer lhe respondeu.
Poucos meses depois a revista Veja, em sua edição 2021, voltou à carga com grande sensacionalismo. A matéria de 15-08-2007 era intitulada “Crimes na Floresta – Muitas tribos brasileiras ainda matam crianças e a FUNAI nada faz para impedir o infanticídio” (pgs. 104-106). O subtítulo diz explicitamente que o infanticídio não teria sido abandonado pelos indígenas em razão do “apoio de antropólogos e a tolerância da FUNAI." A matéria novamente foi assinada pelo mesmo Leonardo Coutinho. Novamente o protesto da ABA foi ignorado pela revista e pode circular apenas através do site da entidade.
Em suma, jornalismo opinativo não pode significar um exercício impune da mentira nem práticas sistemáticas de detratação sem admissão de di reito de resposta. O mérito de uma opinião decorre de informação qualificada, de isenção e equilíbrio. Ao menos no que concerne aos indígenas as matérias elaboradas pela Veja, apenas requentam informações velhas, descontextualizadas e superficiais, assumindo as características de uma campanha, orquestrada sempre pelos mesmos figurantes, que procuram pela reiteração inculcar posturas preconceituosas na opinião pública.
No acima citado comentário do Observatório da Imprensa o jornalista Luciano Martins Costa aprendeu muito bem e expôs sinteticamente o argumento central da revista no que concerne a assuntos indígenas: “A revista afirma que existe uma organização altamente articulada que se dedica a congelar grandes fatias do território nacional, formada por organizações não governamentais e apoiada por antropólogos. Essa suposta "indústria da demarcação" seria a grande ameaça ao futuro do Brasil.” Este é o argumento constante que reúne não só a matéria da semana passada, ma s as intervenções anteriores da revista sobre o tema. Os elos de continuidade fazem lembrar uma verdadeira campanha.
Numa análise minuciosa desta revista, realizada em seu site, o jornalista Luis Nassif fala de uma perigosa proximidade entre lobistas e repórteres nas revistas classificadas como do estilo “neocon”. A presença de “reporteres de dossier” é uma outra característica deste tipo de revista. À luz destes comentários caberia atentar para a lista de situações onde a condição de indígenas é sistematicamente questionada pela revista. Aí aparecem os Anacés, que vivem no município de São Gonçalo do Amarante (onde está o porto de Pecem, no Ceará); os Guarani-M’bià, confrontados por uma proposta do mega-investidor Eike Batista de construção de um grande porto em Peruíbe, São Paulo; e os mesmos Guaranis de Morro dos Cavalos (SC), que lutam contra interesses poderosos, sendo qualificados como “paraguaios” (tal como, aliás, os seus parentes Kayowá e Nandevá do Mato G rosso do Sul, em confronto com o agro-negócio pelo reconhecimento de suas terras).
Como o objetivo último é enfraquecer os direitos indígenas (que naturalmente se materializam em disputas concretas muitas vezes com poderosos interesses privados), os alvos centrais destes ataques tornam-se os antropólogos, os líderes indígenas e os seus aliados (a matéria cita o Conselho Indigenista Missionário/CIMI por várias vezes e sempre de forma igualmente desrespeitosa e inadequada).
É neste sentido que a CAI vem expressar sua posição quanto a necessidade de uma responsabilização legal dos praticantes de tal jornalismo, processando-os por danos morais e difamação. Neste momento a Presidência da ABA, está em conjunto com seus assessores no campo jurídico, visando definir a estratégia processual de intervenção a seguir.
Dada a assimetria de recursos existentes, contamos com a mobilização dos antropólogos e de todos que se preocupam com a defesa dos direitos indígenas para , através de sites, listas na Internet, discussões e publicações variadas, vir a contribuir para o esclarecimento da opinião pública, anulando a ação nefasta das matérias mentirosas acima mencionadas. Que não devem ser vistas como episódios isolados, mas como manifestações de um poder abusivo que pretende inviabilizar o cumprimento de direitos constitucionais, abafando as vozes das coletividades subalternizadas e cerceando o livre debate e a reflexão dos cidadãos. No que toca aos indígenas em especial a Veja tem exercitado com inteira impunidade o direito de desinformar a opinião pública, realimentar velhos estigmas e preconceitos, e inculcar argumentos de encomenda que não resistem a qualquer exame ou discussão.

João Pacheco de Oliveira
Coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas/CAI

Para correspondência:

Caixa Postal 04491
70.904-970
Brasília, DF

Associação Brasileira de Antropologia
Departamento de Antropologia/ICS/UnB
ICC Centro B1-349-65
Campus Universitário Darcy Ribeiro
70.910-900 Brasília, DF
Tel/Fax: (61) 3307-3754

ABA Associação Brasileira de Antropologia se posiciona sobre texto publicado na revista VEJA

Sem dúvida alguma, vale a pena dar continuidade à discussão e ampliar o debate acerca da postura jornalística da Revista VEJA.
A ABA - Associação Brasileira de Antropologia - se posicionou:

Nota da Diretoria da ABA sobre matéria publicada pela revista Veja (Veja ano 43 nº 18, de 05/05/2010)

Frente á publicação de matéria intitulada "A farra da antropologia oportunista" (Veja ano 43 nº 18, de 05/05/2010), a diretoria da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em nome de seus associados, clama pelo exercício de jornalismo responsável, exigindo respeito à atuação profissional do quadro de antropólogos disponível no Brasil, formados pelos mais rigorosos cânones científicos e regidos por estritas diretrizes éticas, teóricas, epistemológicas e metodológicas, reconhecidas internacionalmente e avaliadas por pares da mais elevada estatura cientifica, bem como por autoridades de áreas afins.
A ABA reserva-se ao direito de exigir dos editores da revista semanal Veja que publique matéria em desagravo pelo desrespeito generalizado aos profissionais e acadêmicos da área.


Aproveito para divulgar a carta de Kelly Oliveira, Associada da ABA, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE:

Os Espertalhões e a Veja

Acabei de ler o artigo da veja "A Farra da Antropologia Oportunista" e fiquei estarrecida com a forma bem articulada e ordenada de encobrir verdades, explicitar meias palavras e escancarar depoimentos – escolhidos a dedo – de supostas autoridades discursivas.
Como antropóloga e jornalista percebo, como muitos de vocês, o caráter declaradamente parcial da linha editorial da revista, que de fato não pretende se apresentar como um meio de comunicação que ponha em discussão os dois ou mais lados de uma questão. Sua pretensão é a da formação de opinião a partir de um posicionamento parcial, enfático e carregado de uma expressividade de "dona da verdade", baseada na longa data de existência e, para grande parte do público que a lê, na suposta seriedade de seus artigos – já que não podemos chamar de matéria jornalística escritos tão escancaradamente opinativos como os deste periódico.
Até aí nada de errado, já que a revista se declara abertamente opinativa, não escondendo portanto sua parcialidade. Escrevo, no entanto, a fim de percebermos a forma como a revista pega cada uma das informações e cuidadosamente as seleciona para ir além da opinião e distorcer, omitir e comprometer o posicionamento ético que supostamente acalenta. Começando com as autoridades discursivas citadas – Mércio Pereira Gomes e Eduardo Viveiros de Castro – que demonstram um olhar não só reconhecidamente parcial com relação ao processo de fortalecimento de identidades étnicas no país, como tiveram suas frases escolhidas a dedo para corroborar com uma perspectiva de "originalidade cultural" e de deslegitimação do processo de regularização de territórios indígenas – se é que foram mesmo frases deles, pois o Viveiros de Castro já desmentiu a presença de qualquer fala sua no artigo.
Por outro lado, o artigo explicita meias verdades, ao citar no box "índio bom é índio pobre", o caso de um grupo que, por "culpa" da Funai, teria perdido a oportunidade de vender seu território, em troca de 1 milhão de reais para cada família. Ora, sabemos que, por lei as terras indígenas são propriedade da União e de posse coletiva dos Guarani, sendo inalienáveis, o que evidentemente – mas não tão evidentemente no artigo – impossibilita qualquer tipo de negociação. Por outro lado, ficou explícita a perspectiva preconceituosa como foi caracterizada a liderança do grupo, que segundo a revista é "casada com um caminhoneiro (branco), tem carro, tv, computador, faz compras no supermercado" – fiquei pensando se ela seria mais poupada se fizesse compras em alguma vendinha local.
São tantas as meias verdades, que parece difícil numerar todas. Temos, por exemplo, o momento em que são citados os Anacé (CE), como grupo que faz macumba por achar que seria indígena, o que o artigo trata de declarar como um erro, já que se trataria de um "culto africano". Omitindo, de forma perspicaz, o fato de que os grupos indígenas ao longo dos anos não viveram envoltos em uma bolha cultural, mas estabeleceram relações – de forma enfática naquela região – com populações de origem africana, do que derivaram formas culturais ampliadas, englobando a realidade religiosa dessas pessoas.
Curiosamente, ao citar os laudos antropológicos, segundo a Veja elaborados "sem nenhum rigor científico e com claro teor ideológico de uma esquerda que ainda insiste em extinguir o capitalismo, imobilizando terras para a produção", se depõe de forma criminosa – que seria melhor ressaltada através de um processo movido pela ABA – contra o trabalho de profissionais que têm no rigor científico sua base de ação, desmerecendo processos reflexivos multidisciplinares, que vão além da antropologia, englobando saberes não só das ciências sociais, como também históricos, geográficos, ambientais e jurídicos, para citar apenas algumas das disciplinas envolvidas na feição do documento.
Os ataques foram bem alimentados com informações cuidadosamente embaralhadas – como a de englobar em um mesmo percentual (77,6%) as terras indígenas, quilombolas, assentamentos e reservas florestais, como de áreas improdutivas (e o montante sobe para 90,6% quando incluem cidades e infraestrutura). Fiquei me perguntando o que, afinal, seria o que o artigo chama de "território para produção e desenvolvimento". Porque produtivas as terras indígenas, quilombolas e os assentamentos também são, como temos centenas de exemplos. E até mesmo em áreas de preservação, onde está crescendo a consciência de um manejo sustentável para as famílias que tiram seu sustento das florestas. Afinal, para quem se geraria renda com o que foi definido como "agronegócio" pela veja? A grandes conglomerados empresariais? A mega empresários que pouco ou nada trazem em troca para o país, além de seus nomes divulgados na lista dos mais ricos do mundo (e o que afinal isso contribui para a vida dos brasileiros???)
A Veja parte de uma imoralidade ética e ofensiva não só às comunidades tradicionais, antropólogos e indigenistas como também ao próprio jornalismo.
Um olhar preconceituoso,
tanto do que seria as comunidades tradicionais e assentados rurais quanto da perspectiva de desenvolvimento, que pelo que pude ver se refere a uma visão elitista e antiquada, destinada a negócios que gerem renda para a pequena parcela de privilegiados economicamente. Desmerecendo inclusive a crescente onda de valorização pela comunidade internacional do trabalho familiar e do comércio responsável, que incentiva a produção local e o manejo tradicional de recursos naturais.
Beira a vergonha a forma escancarada como se ataca os personagens apresentados na matéria, e como se transforma uma reivindicação que, evidentemente, tem também seu caráter político, em uma estratégia de "espertalhões", para se apossarem de terras que poderiam estar nas mãos produtivas do "agronegócio". Uma jogada de mestre desta revista, que transforma a reivindicação de grupos tradicionais em um simples jogo por dinheiro, e que coloca os "cidadãos brasileiros" como vítimas de índios,
quilombolas e assentados – que, pelo visto, não são brasileiros, e muito menos cidadãos.

Kelly Oliveira, Associada da ABA, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE

***
Divulgo também a mensagem de repúdio enviada pela Professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo Heloisa Buarque de Almeida:

Se vc leu a matéria, explico muito rapidamente algumas coisas que estão erradas e que são a base de toda a matéria: Por exemplo, a identidade étnica, nada tem a ver com raça - raça aliás, não é um conceito científico, nem para a biologia, desde o final do século XIX - ou com a aparência física da pessoa. Se fosse assim, os filhos, netos de japoneses criados no Braisl, não poderiam ser brasileiros. Já pensou? Eles são e se tornam barsileiros na medida em que vivem nessa cultura, e não importa nesse sentido a aparência fisionômica. É esse ponto que tem a ver com a noção de identidade indígena: se e como as pessoas se reconhecem numa determinada cultura. Por isso, e porque sempre houve misturas de tipos físicos na história da humanidade, os índios podem eventualmente ser loiros ou negros mesmo, SEM deixarem de ser índios. Parece absurdo ao senso comum, mas as coisas são mesmo mais complicadas que o senso comum, não é? Depois, a cultura não é algo estático, que não muda. Muito pelo contrário, basta olhar para nossa própria sociedade. Uma cultura (quais as fronteiras?) também se mistura com outros elementos culturais - por isso, pode haver índios que se dizem católicos, ou do candomblé, e mesmo assim manterem outras tradições culturais indígenas.

Heloisa Buarque de Almeida
Profa. Dra. do Dep. de Antropologia da USP

terça-feira, 4 de maio de 2010

"No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é" resposta de Eduardo Viveiros de Castro à revista VEJA

Diante das polêmicas colocadas pela matéria da Revista Veja, intitulada " A farra da antropologia oportunista", não tenho como deixar de divulgar a resposta de Eduardo Viveiros de Castro, a qual, certamente, expressa a indignação da comunidade antropológica frente este tipo "jornalismo".

Aos Editores da revista Veja:

Em resposta à mensagem que enviei à revista Veja no dia 01/05, denunciando a imputação fraudulenta de declarações que me é feita na matéria "A farra da antropologia oportunista", o site Veja.com traz ontem uma resposta com o título "No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é". Ali, os responsáveis pela revista, ou pela resposta, ou, pelo jeito, por coisa nenhuma, reincidem na manipulação e na mentira; pior, confessam cinicamente que fabricaram a declaração a mim atribuída.

Em minha carta de protesto inicial, sublinhei dois pontos: "(1) que nunca tive qualquer espécie de contato com os responsáveis pela matéria; (2) que não pronunciei em qualquer ocasião, ou publiquei em qualquer veículo, reflexão tão grotesca, no conteúdo como na forma".

Veja contesta estes pontos com os seguintes argumentos:

(1) "Sua primeira afirmação não condiz com a verdade. No início de março, VEJA fez contato com Viveiros de Castro por intermédio da assessoria de imprensa do Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde ele trabalha. Por meio da assessoria, Viveiros de Castro recomendou a leitura de um artigo seu intitulado "No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é", que expressaria sua opinião de forma sistematizada e autorizou VEJA a usar o texto na reportagem de uma maneira sintética."

Respondo: é falso. A Assessoria de Imprensa do Museu Nacional telefonou-me, talvez no início de março (não acredito mais em nada do que a Veja afirma), perguntando se receberia repórteres da mal-conceituada revista, a propósito de uma matéria que estariam preparando sobre a situação dos índios no Brasil. Respondi que não pretendia sofrer qualquer espécie de contato com esses profissionais, visto que tenho a revista em baixíssima estima e péssima consideração. Esclareci à Assessoria do Museu que eu tinha diversos textos publicados sobre o assunto, cuja consulta e citação é, portanto, livre, e que assim os repórteres, com o perdão da expressão, que se virassem. Não "recomendei a leitura" de nada em particular; e mesmo que o tivesse feito, não poderia ter "autorizado Veja" a usar o texto, simplesmente porque um autor não tem tal poder sobre trabalhos seus já publicados. Quanto à curiosa noção de que eu autorizei a revista, em particular, a "usar de maneira sintética" esse texto, observo que, além de isso "não condizer com a verdade", certamente não é o caso que esse poder de síntese de que a Veja se acha imbuída inclua a atribuição de sentenças que não só se encontram no texto em questão, como são, ao contrário e justamente, contraditas cabalmente por ele. A matéria de Veja cita, entre aspas, duas frases que formam um argumento único, o qual jamais foi enunciado por mim. Cito, para memória, a atribuição imaginária: "Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente cultural original" . Com isso, a revista induz maliciosamente o leitor a pensar que (1) a declaração foi dada de viva voz aos repórteres; (2) ela reproduz literalmente algo que disse. Duas grosseiras inverdades.

Veja contesta o segundo ponto com o argumento:

(2) "Também não condiz com a verdade a afirmação feita por Viveiros de Castro no item (2) de sua carta. A frase publicada por VEJA espelha opinião escrita mais de uma vez em seu texto ("Não é qualquer um; e não basta achar ou dizer; só é índio, como eu disse, quem se garante" e "pode-se dizer que ser índio é como aquilo que Lacan dizia sobre ser louco: não o é quem quer. Nem quem simplesmente o diz. Pois só é índio quem se garante")." Ato contínuo, a revista dá o texto na íntegra, repetindo que eu a autorizei a usar o texto "da forma que bem entendesse".

(Veja o link para meu texto: http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf).

Pela ordem. Em primeiro lugar, essa resposta da revista fez desaparecer, como num passe de mágica, a frase propriamente afirmativa de minha suposta declaração, a saber, a segunda (Só é índio quem nasce, cresce e vive em um ambiente cultural original"), visto que a primeira (Não basta dizer que é índio etc.) permanece uma mera obviedade, se não for completada por um raciocínio substantivo. Ora, o raciocínio substantivo exposto em meu texto está nas antípodas daquele que Veja falsamente me atribui. A afirmação de Veja de que eu a autorizara a "usar" o texto da forma que ela "bem entendesse" parece assim significar, para os responsáveis (ou não) pela revista, que ela poderia fabricar declarações absurdas e depois dizer que "sintetizavam" o texto. Esse arrogamente "da forma que bem entendesse" não pode incluir um fazer-se de desentendido da parte da Veja.

Reitero que a revista fabricou descaradamente a declaração "Só é indio quem nasce, cresce e vive em um ambiente cultural original". Se o leitor tiver o trabalho de ler na íntegra a entrevista reproduzida em Veja.com, verá que eu digo exatamente o contrário, a saber, que é impossível de um ponto de vista antropológico (ou qualquer outro) determinar condições necessárias para alguém (uma pessoa ou uma coletivdade) "ser índio". A frase falsa de Veja põe em minha boca precisamente uma condição necessária, e, ademais, absurda. Em meu texto sustento, ao contrário e positivamente, que é perfeitamente possível especificar diversas condições suficientes para se assumir uma identidade indígena. Talvez os responsáveis pela matéria não conheçam a diferença entre condições necessárias e condições suficientes. Que voltem aos bancos da escola.

A afirmação "só é índio quem nasce, cresce e vive em um ambiente cultural original" é, repito, grotesca. Nenhum antropólogo que se respeite a pronunciaria. Primeiro, porque ela enuncia uma condição impossível (o contrário de uma condição necessária, portanto!) no mundo humano atual; impossível, na verdade, desde que o mundo é mundo. Não existem "ambientes culturais originais"; as culturas estão constantemente em transformação interna e em comunicação externa, e os dois processos são, via de regra, intimamente correlacionados. Não existe instrumento científico capaz de detectar quando uma cultura deixa de ser "original", nem quando um povo deixa de ser indígena. (E quando será que uma cultura começa a ser original? E quando é que um povo começa a ser indígena?). Ninguém vive no ambiente cultural onde nasceu. Em segundo lugar, o "ambiente cultural original" dos índios, admitindo-se que tal entidade exista, foi destruido meticulosamente durante cinco séculos, por epidemias, massacres, escravização, catequese e destruição ambiental. A seguirmos essa linha de raciocínio, não haveria mais índios no Brasil. Talvez seja isso que Veja queria dizer. Em terceiro lugar, a revista parte do pressuposto inteiramente injustificado de que "ser índio" é algo que remete ao passado; algo que só se pode ou continuar (a duras penas) a ser, ou deixar de ser. A idéia de que uma coletividade possa voltar a ser índia é propriamente impensável pelos autores da matéria e seus mentores intelectuais. Mas como eu lembro em minha entrevista original deturpada por Veja, os bárbaros europeus da Idade Média voltaram a ser romanos e gregos ali pelo século XIV -- só que isso se chamou "Renascimento" e não "farra de antropólogos oportunistas". Como diz Marshall Sahlins, o antropólogo de onde tirei a analogia, alguns povos têm toda a sorte do mundo.

E o Brasil, será que temos toda a sorte do mundo? Será que o Brasil algum dia vai se tornar mesmo um grande Estados Unidos, como quer a Veja ? Será que teremos de viver em um ambiente cultural que não é aquele onde nascemos e crescemos? (Eu cresci durante a ditadura; Deus me livre desse ambiente cultural). Será que vamos deixar de ser brasileiros? Aliás, qual era mesmo nosso ambiente cultural original?

Grato mais uma vez pela atenção

Eduardo Viveiros de Castro
antropólogo - UFRJ