quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro

Antropologia renovada

Eduardo Viveiros de Castro é reconhecido por ter renovado o pensamento antropológico
Publicado em 13 de dezembro de 2010 pela revista CULT


Juvenal Savian Filho e Wilker Sousa
Fotos: Lucas Zappa

“Viveiros de Castro é o fundador de uma nova escola na antropologia. Com ele me sinto em completa harmonia intelectual.” Essas palavras são do antropólogo e pensador francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009) a respeito da obra do brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. Professor de antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele é reconhecido nacional e internacionalmente por seus estudos em etnologia indígena – o ensaio “Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio”, publicado em 1996, recebeu traduções para diversas línguas e foi incluído em duas antologias britânicas de textos-chave da disciplina, a primeira centrada na antropologia da religião, a outra dedicada à teoria antropológica geral. Em 2009, publicou na França o livro Métaphysiques Cannibales, no qual resume as implicações filosóficas e políticas de suas pesquisas entre os povos indígenas brasileiros. No Brasil, seu livro mais conhecido é A Inconstância da Alma Selvagem, publicado em 2002, que reúne estudos escritos ao longo de sua carreira até então. Uma segunda coleção, trazendo seus ensaios mais recentes, está em preparação, devendo ser publicada pela editora CosacNaify em 2012, sob o título A Onça e a Diferença.

Seu currículo inclui atividades intelectuais em âmbito mundial. Foi professor-associado nas universidades de Manchester e Chicago e ocupou a cátedra Simón Bolívar de Estudos Latino-americanos da Universidade de Cambridge. Foi diretor de pesquisas no Centro Nacional de Pesquisa Científica, em Paris, tornando-se membro permanente da Equipe de Pesquisa em Etnologia Ameríndia. Ainda na França, foi agraciado em 1998 com o Prix da La Francophonie, concedido pela Academia Francesa.

Aos 59 anos de idade, construiu uma obra potente e irretocável. Viveiros de Castro recebeu a reportagem da CULT em sua sala no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e falou sobre seu trabalho, a atual política indigenista, a crise ambiental e a inserção do Brasil na economia mundial.

CULT – Como se dá seu trabalho de campo e com que regularidade o senhor visita as comunidades indígenas?
Eduardo Viveiros de Castro – O principal de minhas pesquisas de campo com os povos indígenas da Amazônia fez-se entre os anos 1975 e 1988. Estive por breves períodos entre os Yawalapiti do Parque do Xingu, em Mato Grosso (hoje o estado deveria ser chamado de Mato Ralo), os Kulina do Rio Purus, no Acre, os ianomâmis da Serra de Surucucus, em Roraima, e finalmente entre os Araweté do Igarapé Ipixuna, no Médio Xingu, Pará. Apenas entre os Araweté realizei o que se pode chamar de uma pesquisa etnográfica, que requer uma convivência demorada com o povo estudado, o aprendizado da língua nativa (no meu caso, bem incipiente) e o envolvimento emocional e cognitivo – o compromisso existencial – com as questões e preocupações da vida da comunidade que generosamente aceitou receber o antropólogo. Minha estada com os Araweté não foi tão longa quanto deveria: morei no Ipixuna por cerca de dez meses, entre 1981 e 1983, quando precisei deixar a área por motivos de saúde (malárias repetidas). Depois voltei algumas vezes, em visitas curtas, perfazendo 14 meses até 1995. Isto é, na melhor das hipóteses, a metade do que se precisa para fazer um bom trabalho de campo. Mas cada um faz o que pode. Há quem aprenda mais depressa, outros precisam de mais tempo. Além disso, há povos que demandam muitos anos de convivência até que as coisas comecem a fazer sentido para o pesquisador, e outros que são mais abertos e mais diretos. Por fim, tudo depende daquilo que se quer estudar. De qualquer maneira, não me vejo como um grande pesquisador de campo. Sou um etnógrafo apenas razoável.

Há cerca de um mês, após 15 anos de ausência, voltei ao Ipixuna para uma rápida visita. A desculpa para uma ausência tão demorada, a rigor indesculpável, foi que a vida me levou para longe da Amazônia: ensino, família, períodos de residência no exterior, o lento trabalho da escrita, o peso da idade… Isso para não mencionar algumas dificuldades que acabei tendo com a autoridade indigenista local, em Altamira (PA), por causa das empresas evangélicas que queriam se instalar entre os Araweté. Aos olhos desses missionários, eu era uma espécie de Satã que estava ali entravando a almejada conquista espiritual dos índios. Assim que parei de ir com mais frequência ao Ipixuna, esses missionários conseguiram se insinuar nas aldeias, com a complacência da administração indigenista. O estrago que causaram, até agora, ainda não parece ter sido grande demais. O mérito, naturalmente, é dos próprios Araweté.

Retornei a convite dos Araweté – não foi o primeiro que me fizeram, nesses 15 anos – e da nova administração da Funai em Altamira, com quem tenho a firme intenção de colaborar, nessa fase histórica tão difícil que se abre agora para os povos indígenas do Médio Xingu, com a construção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte. Está na hora também de passar o bastão e apresentar alguns de meus estudantes do Museu Nacional aos Araweté, para que possam continuar o trabalho.


O senhor concorda que, nas últimas duas ou três décadas, os “índios” têm aparecido mais no debate político e nos veículos de comunicação? Por que isso demorou tanto tempo?
Em seu livro Tristes Trópicos, Lévi-Strauss conta uma anedota reveladora. Era o começo dos anos 1930, ele estava de partida para o Brasil, onde ia ensinar sociologia na USP. Lévi-Strauss encontra o embaixador brasileiro na França, Luiz de Souza Dantas, em um jantar de cerimônia, e lhe pergunta sobre os índios brasileiros, que já então muito lhe interessavam. Ao perguntar ao embaixador como deveria proceder para visitar alguma comunidade indígena, este lhe respondeu: “Ah, meu senhor, no Brasil há muito tempo não há mais índios. Essa é uma história muito triste, mas o fato é que os índios foram exterminados pelos portugueses, pelos colonizadores, e hoje não há mais índios no Brasil. É um capítulo muito triste da história brasileira. Há muitas coisas apaixonantes a serem vistas no Brasil, mas índios, não há mais um só…” Lévi-
-Strauss conta que, naturalmente, quando chegou ao Brasil, descobriu que não era bem assim.

Isso não quer dizer que o embaixador (cuja aparência física, diz maliciosamente Lévi-Strauss, indicava uma óbvia contribuição indígena) estivesse mentindo deliberadamente, procurando negar uma realidade vergonhosa mas sabida. De fato, o embaixador não sabia que havia índios no Brasil; o Brasil que ele representava diplomaticamente não continha índios. O Brasil era um país desesperado para ser moderno, então não havia, porque não podia haver, mais selvagens aqui. Outro fato curioso: em 1970 (portanto, 40 anos depois do diálogo de Lévi-Strauss com o embaixador), o censo indígena da Funai indicava, para o estado do Acre, a notável população de “zero indivíduo”. Oficialmente, não havia mais índios no Acre. Aí começam a abrir as estradas por lá, a derrubar a mata, a botar boi, e eis que começam a aparecer índios a atravancar a expansão dos pastos e a destruição da floresta. (Junto com índios, como se sabe, começaram também a aparecer os seringueiros, que se imaginava como mais outra “raça” em extinção. E bem que se tentou extingui-los naquela época – lembrem-se de Chico Mendes.) Ora, índios sempre houve lá no Acre, todo mundo no Acre sabia que eles estavam lá, mas eles não existiam em Brasília, ou melhor, para Brasília. Agora sabe-se e aceita-se que o estado do Acre abriga, atualmente, 14 povos indígenas, alguns de significativa expressão demográfica, como os Kaxinauá e os Kulina. O Acre é um estado profundamente indígena, dos pontos de vista cultural, histórico e demográfico. Na verdade, ele é hoje o principal exportador de práticas e símbolos indígenas (mais ou menos transformados) para o Brasil urbano atual.

A que mais se deve essa redescoberta dos índios nas últimas décadas?
Tudo começou com uma iniciativa fracassada do governo militar, em 1978, que visava extinguir os índios, entenda-se, acelerar o processo de desconhecimento da população indígena, consagrar seu não reconhecimento como um componente diferenciado dentro da chamada “comunhão nacional”. Completar o processo de “assimilação”, isto é, de desindianização, que se entendia como inexorável e desejável ao mesmo tempo. O governo propôs um projeto de lei para “emancipar” os índios, isto é, extinguir a tutela oficial do Estado que os protegia. O verdadeiro objetivo da medida era liberar as terras indígenas, terras públicas, de domínio da União, inalienáveis, para que entrassem no mercado fundiário capitalista. Ao declarar que esta ou aquela população indígena não “era mais” índia, porque seus membros falavam português, ou usavam roupa etc., o que o projeto de lei pretendia era entregar as terras públicas de posse dos índios nas mãos dos interesses proprietariais particulares. Simplesmente se queria tirar os índios da frente do trator do capital: em vez de índio, que venham o gado, a soja, os madeireiros, o latifúndio, o mercado de terras, a mineração, a estrada, a poluição e tudo que vem junto. E que muitos chamam de “desenvolvimento”.

Mas, naquele momento, os idos de 1978, quando estava se consolidando a resistência organizada à ditadura, muito da insatisfação política da classe média, dos intelectuais principalmente, se cristalizou em torno da questão indígena, como se ela fosse uma espécie de emblema do destino de todos os brasileiros. É também nesse momento que tomam ímpeto o movimento negro, o movimento feminista, a politização ativa da orientação sexual, a emergência de diversas minorias, diversas diversidades por assim dizer: étnicas, locais, sexuais, ocupacionais, culturais etc. A luta de classes assumia cada vez mais o caráter de uma integração parcial de uma série de diferenciais traçados sobre outros eixos que a economia pura e simples (as relações de produção). Começam a surgir outros atores políticos. É o momento da especulação e da experimentação generalizadas: outras práticas do laço social, outras imagens da sociedade, que não se reduzem ao par Estado-classes sociais, mas que envolvem outras formas de vida, outros territórios existenciais. Os índios foram importantes por sua força exemplar, seu poder de condensação simbólica. Eles apareceram como portadores de outro projeto de sociedade, de outra solução de vida que contraprojetava uma imagem crítica da nossa.

Mas, desde o século 16, a vida indígena aparece como uma imagem crítica da vida “ocidental”.
Sim, sem dúvida. Há uma frase de um jovem filósofo que eu admiro muito, Patrice Maniglier, um grande especialista em Lévi-Strauss, aliás: “A antropologia nos devolve uma imagem de nós mesmos na qual nós não nos reconhecemos”. É por isso que ela é importante, porque nos devolve algo, ela nos “reflete”. Mas a gente vê essa imagem e não se reconhece nela. “Então nós, humanos, somos assim também? Podemos ser isso? Somos isso, em potência? Temos em nós a capacidade de viver assim? Essa é uma solução de vida ao nosso alcance, como espécie?” Em suma: “É possível ser feliz sem carro, geladeira e televisão?”. Isso nos dá um susto, um susto com valor de conhecimento. Os índios, desde o século 16, desempenharam essa função para a reflexão político-filosófica ocidental (para uma muito pequena parte dela, na verdade). E essa mesma função, mas modernizada, especificada e tornada mais evidente pelo fato de que os índios brasileiros da década 1970 – a década que inicia a ocupação destrutiva em larga escala da Amazônia – eram nossos conterrâneos e nossos contemporâneos, eles nos ensinavam algo não só sobre nós mesmos como sobre nosso projeto de país, o Brasil que queríamos, e que não era certamente o Brasil que tínhamos. Então, foi em torno das sociedades indígenas como diferença emergente que se constituiu a resistência contra o projeto de emancipação: uma resistência contra o projeto de privatização econômica, o branqueamento político e a estupidificação cultural do Brasil.

Os antropólogos, nesse contexto, começam a se organizar como categoria, aliando-se aos índios como atores políticos. Houve, é claro, antropólogos que tiveram um papel importantíssimo na história não só da causa indígena, mas da própria República, como Roquette Pinto ou Darcy Ribeiro, antes de (e durante) essa época. Mas naquele momento, no fim da década de 1970, os antropólogos se constituem como corporação para interpelar o governo e se opor ao projeto de emancipação. Essa mobilização sensibilizou a sociedade, entenda-se, outros intelectuais, militantes políticos de outras causas, advogados, juristas, artistas, e também as camadas médias urbanas, os estudantes… Ao mesmo tempo, e muito mais importante, os índios como que “acordaram” para seu poder de intervenção nos circuitos nacionais e internacionais de comunicação. Eles deixavam ali de ser um elemento do folclore nacional, de um passado vago e distante, e passavam a atores políticos do presente, signos críticos e urgentes de uma ultracontemporaneidade: signos do futuro, na verdade.

Enfim, é nesse momento, fim dos anos 1970, que ganha vulto todo o movimento de auto-organização de coletivos que não são mais redutíveis nem aos partidos nem aos sindicatos: a célebre “sociedade civil organizada”. É então também que começam a aparecer figuras indígenas individuais com destaque político. A primeira delas foi Mário Juruna, um deputado que foi tratado folcloricamente pela imprensa, mas que teve um papel estratégico para a emergência dos índios no cenário político-ideológico nacional e internacional (lembremos do Tribunal Russell). Juruna, que marcou presença por alguns gestos muitos simples, de grande “pega” midiática, ficou famoso com seu gravador – um edificante signo do poder da “tecnologia” nas mãos de um “selvagem”; melhor ainda, e agora de verdade, um dispositivo que preservava a potência e a imediatez da oralidade, o registro semiótico em que os indígenas se sentem completamente em casa – que armazenava as promessas e declarações de autoridades e políticos. Depois, promessa quebrada, declaração falseada pelos fatos, Juruna tocava seu gravador na frente da “otoridade” e dizia: “Mas não foi o contrário que o senhor falou?” “O senhor não havia prometido isso?” Depois de Mário Juruna, o protagonismo indígena, coletivo e individual, proliferou: associações, federações, líderes de grande expressão como Ailton Krenak e David Kopenawa.

Qual o papel da Constituinte de 1988 nesse processo?
Esse processo do fim da década de 1970 culminou em 1988, com a Constituinte e a Constituição, que tiveram um papel fundamental para formalizar a presença dos índios dentro da comunhão nacional. É aqui que se começa a reconhecer direitos coletivos, coisa que, salvo engano, mal existia no Brasil: direitos difusos, direitos coletivos, comunidades sujeitos de direito, índios, quilombolas. Uma vitória imensa, atestável no ódio que a Constituição de 1988 desperta na direita, sempre à espreita de uma oportunidade para “reformar” a Constituição, isto é, para desfigurá-la, e sempre eficaz na protelação da indispensável regulamentação de diversos artigos constitucionais.

O senhor vê com bons olhos as políticas de proteção dos direitos indígenas na era Lula?
Houve grandes conquistas, a mais importante, sem dúvida, o reconhecimento da terra indígena Raposa Serra do Sol. Mas manteve-se, ou mais, acentuou-se o projeto de governo baseado na equação falaciosa entre desenvolvimento e crescimento, em uma ideia de crescimento a qualquer preço e, nesse sentido (eu sublinho: apenas nesse sentido), o governo Lula manteve sua continuidade com todos os governos anteriores, pelo menos até Vargas e incluindo os governos da ditadura. Uma ideia de que é preciso conquistar o Brasil, ocupá-lo, civilizá-lo, modernizá-lo, desenvolvê-lo, implicando com isso a ideia de que os índios não são brasileiros, não estão lá, não vivem em suas terras segundo seus próprios esquemas civilizacionais, não possuem uma cultura viva e eficaz. Tudo isso se baseia em um modelo cultural falido, a ideia de modernidade.

E qual é esse modelo?
É o modelo de industrialização intensiva, poluente, de exportação maciça de matéria-prima, monocultura, agronegócio, transgênicos, agrotóxicos, petróleo… Ele bate de frente com os interesses das populações indígenas e, arrisco-me a dizer, com as perspectivas de toda a população do país e do planeta. O que precisamos é imaginar uma forma econômica com algum futuro, capaz de assegurar o suficiente para todos, uma vida que seja boa o bastante para as gerações vindouras. Então, eu tenho sérias restrições não à política indigenista do governo Lula – aliás, o atual presidente da Funai [Márcio Augusto Freitas de Meira] é um colega que admiro e respeito –, mas o problema é que essa política indigenista sempre teve de se dobrar aos imperativos de uma geopolítica nacional e internacional ambientalmente desastrosa. Toda vez que algum setor do governo ameaçou criar dificuldades para essa geopolitica desenvolvimentista, foi obrigado a entrar na linha, ou sair de cena. Veja Marina Silva. No caso da Funai, a tendência foi seguir os limites estreitos de manobra deixados pela Casa Civil e seu implacável desenvolvimentismo.

Qual seria, então, a alternativa a esse modelo?
O Brasil tem a oportunidade única de ser um dos poucos lugares da Terra onde um novo modelo de sociedade e de civilização poderia se constituir. Somos um dos poucos países do mundo que tem recursos suficientes para inventar outra ideia e outra prática de desenvolvimento. Parece que aprendeu muito pouco com a história recente do mundo. Quando se exporta soja e gado, está se exportando o quê? O solo, a água do país. Para fazer 1 quilo de carne, são necessários 15 mil litros de água; para 1 quilo de soja, são necessários 1.800 litros. O Brasil é o maior exportador de “água virtual” do mundo. Isso para não falarmos nos insumos venenosos: hormônios para o gado, fertilizantes, agrotóxicos… O Brasil é o maior consumidor de defensivos agrícolas do planeta. Imagine o risco sanitário a que estamos expostos. Todas essas maravilhas que tanto aumentam a produtividade agrícola (e ao mesmo tempo baixam a qualidade e a segurança dos alimentos) são-nos enfiadas garganta abaixo por grandes companhias transnacionais como a Monsanto, cuja ficha ambiental e política é mais que suja, é imunda.

E está em curso a polêmica sobre a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Quando se fala em hidrelétricas, bem, de fato talvez seja melhor do que a energia nuclear – em princípio, uma vez que a questão do lixo nuclear está bem longe de ser resolvida, além dos problemas de segurança –, mas quais são as implicações do ponto de vista, por exemplo, do abastecimento de água? E, aliás, para quem vai o principal da energia elétrica que é produzida por uma grande hidrelétrica como Tucuruí, ou Belo Monte? Vai para a população ou para as fábricas de alumínio, os projetos de extração e processamento de cobre e níquel da Amazônia? O que fazem essas fábricas de alumínio? Latas de saquê e cerveja, principalmente. Por que as fábricas de alumínio estão aqui? Por que países como o Japão não querem gastar uma imensa quantidade de energia para mover as cubas eletrolíticas onde se funde o alumínio? É melhor que um país grande, periférico e perdulário detone seus rios. A usina de Tucuruí, concebida durante o regime militar, significou 2 bilhões de reais de subsídio para as indústrias de alumínio, como constatou um especialista recentemente. O destino real da energia produzida pelo Complexo Hidrelétrico de Belo Monte ainda é uma espécie de segredo de Estado. Mas parece que essa energia virá principalmente para o Sul e o Sudeste, ou servirá para alimentar novas indústrias eletrointensivas – cobre, bauxita, níquel – no Norte, algumas aliás
não nacionais (a direita vive falando no perigo de uma invasão estrangeira da Amazônia; ela já aconteceu, mas como é uma invasão do capital, parece que pode…). Os benefícios para a população, e especialmente para a população local, são muito duvidosos.

Como se deu seu contato com o pensamento de Lévi-Strauss?
Meu contato com Lévi-Strauss antecede meu contato com a antropologia. Foi enquanto eu fazia ciências sociais, em um curso de teoria literária dado por Luiz Costa Lima. Foi ele quem me aconselhou a fazer antropologia. Isso foi nos idos de 1969, 1970. Naquele momento, o estruturalismo antropológico estava penetrando em diversas áreas das ciências humanas, como a psicanálise e a crítica literária, então o Costa Lima, professor de literatura e grande teórico da área, resolveu dar um curso sobre As Mitológicas na sociologia da PUC-Rio, onde eu estudava.

O senhor poderia apresentar-nos o conceito do perspectivismo indígena?
Esse é um assunto sobre o qual hesito um pouco em falar, porque o termo “perspectivismo indígena” se tornou excessivamente popular no meio antropológico, e a ideia que ele designa começa a sofrer o que sofre toda ideia que se difunde muito e rapidamente: banalização, de um lado, despeito, de outro. Passa a servir para tudo, ou a não servir para nada. De qualquer forma, não fui eu quem inventou sozinho a teoria do perspectivismo indígena; foi um trabalho de grupo, em que se destaca a colaboração formativa que mantive com minha colega Tânia Stolze Lima. Tomamos emprestado do vocabulário filosófico esse termo de perspectivismo para qualificar um aspecto marcante de várias, senão de todas, as culturas nativas do Novo Mundo. Trata–se da noção de que o mundo é povoado por um número indefinidamente indeterminado de espécies de seres dotadas de consciência e cultura. Isso está associado à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é uma “roupa” que oculta uma forma interna humanoide, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Até aqui, nada de muito característico: a ideia de que a espécie humana não é um caso à parte dentro da criação, e de que há mais gente, mais pessoas no céu e na terra do que sonham nossas antropologias, é muito difundida entre as culturas tradicionais de todo o planeta.

O que distingue as cosmologias ameríndias é um desenvolvimento sui generis dessa ideia, a saber, a afirmação de que cada uma dessas espécies é dotada de um ponto de vista singular, ou melhor, é constituída como um ponto de vista singular. Assim, o modo como os seres humanos veem os animais e outras gentes do universo – deuses, espíritos, mortos, plantas, objetos e artefatos – é diferente do modo como esses seres veem os humanos e veem a si mesmos. Cada espécie de ser, a começar pela nossa própria espécie, vê-se a si mesma como humana. Assim, as onças, por exemplo, se veem como gente: cada onça individual vê a si mesma e a seus semelhantes como seres humanos, organismos anatômica e funcionalmente idênticos aos nossos. Além disso, cada tipo de ser vê certos elementos-chave de seu ambiente como se fossem objetos culturalmente elaborados: o sangue dos animais que matam é visto pelas onças como cerveja de mandioca, o barreiro em que se espojam as antas é visto como uma grande casa cerimonial, os grilos que os espectros dos mortos comem são vistos por estes como peixes assados etc. Em contrapartida, os animais não veem os humanos como humanos. As onças, assim, nos veem como animais de caça: porcos selvagens, por exemplo. É por isso que as onças nos atacam e devoram, pois todo ser humano que se preza aprecia a carne de porco selvagem. Quanto aos porcos selvagens (isto é, aqueles seres que vemos como porcos selvagens), estes também se veem como humanos, vendo, por exemplo, as frutas silvestres que comem como se fossem plantas cultivadas, enquanto veem a nós humanos como se fôssemos espíritos canibais – pois os matamos e comemos.

E o que é o humano?
É essa capacidade de socialidade. Antes, tudo era transparente a tudo, os futuros animais e os futuros humanos, vamos chamar assim, se entendiam, todos se banhavam num mesmo universo de comunicabilidade recíproca. Lévi-Strauss tem uma definição muito boa, dada numa entrevista. O entrevistador pergunta: “O que é um mito?”. Lévi-Strauss responde: “Bom, se você perguntasse a um índio das Américas, é provável que ele respondesse: ‘Um mito é uma história do tempo em que os animais falavam’”. Essa definição, que parece banal, na verdade é muito profunda. O que ele está querendo dizer é que o mito é uma história do tempo em que os homens e os animais estavam em continuidade, se comunicavam entre si. Na verdade a humanidade nunca se conformou por ter perdido essa transparência com as demais formas de vida, e os mitos são uma espécie de nostalgia da comunicação perdida.

Essa é de fato uma noção universal no pensamento ameríndio, a de um estado originário de coacessibilidade entre os humanos e os animais. As narrativas míticas são povoadas de seres cuja forma, nome e comportamento misturam atributos humanos e não humanos, em um contexto de intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo intra-humano atual. O propósito da mitologia, com efeito, é narrar o fim desse estado: trata-se da célebre separação entre “cultura” e “natureza” analisada nas Mitológicas de Lévi-Strauss. Mas não se trata aqui de uma diferenciação do humano com base no animal, como é o caso em nossa mitologia evolucionista moderna. A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. Os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos; os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais. Se nossa antropologia popular vê a humanidade como erguida sobre alicerces animais, normalmente ocultos pela cultura – tendo outrora sido “completamente” animais, permanecemos, “no fundo”, animais –, o pensamento indígena conclui ao contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros seres do cosmo continuam a ser humanos, mesmo que de modo não evidente.

Se tudo está impregnado de humanidade, quais são as consequências disso para o modo de vida indígena?
Se tudo é humano, nós não somos especiais; esse é o ponto. E, ao mesmo tempo, se tudo é humano, cuidado com o que você faz, porque, quando corta uma árvore ou mata um bicho, você não está simplesmente movendo partículas de matéria de um lado para o outro, você está tratando com gente que tem memória, se vinga, contra-ataca, e assim por diante. Como tudo é humano, tudo tem ouvidos, todas as suas ações têm consequências.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

I Encontro Consumo, Cultura e Sociedade: CONSUMO E CRISES EM PORTUGAL: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS

8 e 9 de Abril - Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Organização: Isabel Cruz (ISFLUP) e Mónica Truninger (ICS-UL)

Vários cientistas sociais e investigadores têm trabalhado sobre as sociedades de consumo, centrando-se analiticamente nalgumas das suas principais características: o aumento exponencial de bens e serviços; os novos padrões de consumo; uma democratização de bens e produtos; a quebra de costumes e instituições; a diversificação de valores e comportamentos; a extensão dos direitos sociais; novas formas de lazer; o incremento de processos de individualização e estetização bem como dos valores hedonistas junto do consumidor (Warde, 1997; Sassatelli 2007, Featherstone, 1991). Nestas sociedades, o consumo é uma das principais formas de reprodução social e de diferenciação. Assim, valores, crenças e práticas são perpetuados através do consumo, alimentando a memória colectiva da sociedade e reforçando, paradoxalmente, as clivagens e convergências em diversas esferas sociais (política, religiosa, social, cultural).
Ao longo das últimas décadas alguns dos traços característicos de uma sociedade de consumo tornaram-se visíveis em Portugal. Entre as mudanças que contribuíram para o desenvolvimento da sociedade de consumo salientamos: a queda do regime ditatorial, em 1974 e a consolidação de um Estado democrático; o livre acesso a bens e serviços, especialmente após a adesão à União Europeia, em 1986, e consequente acesso a um quadro político-económico de liberalização dos mercados internacionais; a flexibilidade do acesso a bens de consumo pelo sistema bancário por meio de facilidades de crédito; o aumento da feminização no trabalho e na educação; o aumento da urbanização fruto do incremento de diferentes mobilidades (dentro e fora do país); o aumento dos níveis de escolarização da população; a aceleração e extensão das tecnologias de informação acompanhado por um aumento generalizado do rendimento disponível (ver Santos, 1993; Barreto, 1996 e 2000; Viegas e Firmino, 1998; Pureza e Ferreira, 2002, Faria et al, 2004). Estes factores contribuíram para a consolidação de uma sociedade de consumo em Portugal, e com ela proliferaram, também, os aspectos moralmente qualificados como mais negativos do consumismo: o seu materialismo crescente, o individualismo, a insustentabilidade, o endividamento do consumidor e as desigualdades sociais na distribuição e no acesso a bens materiais e não materiais (simbólicos e culturais).
Em oposição, vozes dissidentes ganham visibilidade e propõem novas formas de vida e de consumo nas sociedades contemporâneas. Em Portugal, são cada vez mais visíveis os movimentos críticos ao consumo. Estes enfatizam um conjunto de preocupações, incluindo as questões do consumo sustentável (por vezes qualificado como consciente ou responsável), das desigualdades sociais, a preservação da tradição e da autenticidade, da vida calma, sossegada e tranquila (expressos pelos movimentos da voluntary simplicity e do slow movement), entre outros aspectos. Estes problemas têm sido especialmente evidenciados no contexto actual, onde a presença e o agravamento das diversas crises (ambientais, financeiras, económicas e sociais), têm vindo a sacudir a estrutura do tecido social. Neste clima nebuloso, novas ideias e soluções sobre a posição do consumo e dos consumidores dentro de uma sociedade em transição são objecto de discussão e debate [ver, por exemplo, o Global Green New Deal da UNEP; Prosperity Withouth Growth de Tim Jackson ou ainda o movimento da transição (transition towns) inspirado pelo permaculturalista Rob Hopkins].
Dada a escassez de estudos em Portugal e de uma reflexão que considere seriamente estas questões (nomeadamente no seio da sociedade portuguesa), convidamos ao envio de propostas de comunicações que incidam sobre um ou mais dos seguintes temas:

1) Abordagens teóricas do consumo: os contributos da teoria social contemporânea para compreender consumo e crises
2) Consumo em tempos de crise: impactos e estratégias criativas nos séculos XX e XXI
3) Consumo sustentável: O papel do Estado e dos novos movimentos sociais no actual contexto de crise
4) Novas formas de reconfigurar as interacções entre produção e consumo nas sociedades do presente e do futuro

Normas para apresentação de resumos:
Resumos (máximo de 300 palavras) deverão ser enviados até 31 de Janeiro de 2011 (segunda-feira) para o seguinte email:encontroconsumo@gmail.com. No resumo indique, por favor, o nome do autor(es) e filiação institucional(s), o endereço de e-mail e telefone do autor principal.

Inscrições: até 28 de Março
A participação no encontro é gratuita, estando, contudo, sujeita a inscrição para o email encontroconsumo@gmail.com. Os interessados deverão indicar: nome, instituição e endereço electrónico.

Conheça também: Grupo de "Estudos do Consumo" - www.estudosdoconsumo.com.br

domingo, 9 de janeiro de 2011

Leitura de Domingo - A pena do Etnólogo

A pena do etnólogo


QUANDO "TRISTES TRÓPICOS" foi lançado na França, em 1955, o júri do prêmio Goncourt publicou um comunicado, lamentando não poder atribuir a honra máxima da literatura francesa ao livro de Lévi-Strauss. O regulamento era claro: o prêmio se dirigia às "obras de imaginação". E "Tristes Trópicos" não era um livro de ficção.

Naquele ano, o Goncourt acabou nas mãos de Roger Ikor, autor de "Les Eaux Mêlées" ("Águas Misturadas"). E, como se não bastasse ter que compartilhar com o mundo a indiscrição do júri que o premiou a contragosto, Ikor ainda teria que amargar o esquecimento da história.

CIÊNCIA E LITERATURA

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SAO PAULO, SP, BRASIL, 05-01-2010, 16:00h. Pinturas para ilustr'ssima. (Alexandre Rezende/Folhapress EDITORIA) *** EXCLUSIVO FOLHA ***
Não é anormal atribuir prêmios literários de prestígio a livros e autores de quem nunca mais vai se ouvir falar. Anormal é o júri de um prêmio de prestígio, dirigido a uma obra de ficção, lamentar publicamente não poder entregá-lo a um cientista. O caso expõe um pouco das relações ambíguas entre ciência e literatura na França.

O aparecimento das ciências humanas no século 19 criou um problema que permaneceu mal resolvido entre os franceses ao longo do século 20 --e que os ingleses, graças a circunstâncias culturais e históricas diversas, puderam ignorar. O conhecimento do homem, até então considerado objeto literário, passou a ser reivindicado pela ciência.

É desse problema, nas suas variadas manifestações e reações, que trata o recente"L'Adieu au Voyage --L'Ethnologie Française entre Science et Littérature" ["Adeus à Viagem-- A Etnologia Francesa entre a Ciência e a Literatura", Gallimard, 528 págs., € 25, R$ 55], de Vincent Debaene, organizador das obras de Lévi-Strauss na prestigiosa coleção Bibliothèque de la Pléiade e professor de literatura na Universidade Columbia, em Nova York.

SEGUNDO LIVRO

Debaene notou que grandes obras da antropologia francesa do século 20 se fizeram acompanhar por um segundo volume, por assim dizer "literário", do mesmo autor. O livro podia sair anos depois (ou, excepcionalmente, antes --caso de "África Fantasma", de Michel Leiris) do trabalho científico ao qual fazia eco --como "Tristes Trópicos", publicado sete anos depois de "A Vida Familiar e Social dos Índios Nambikwara". O importante é que esse "segundo livro" retomava o objeto de estudo do primeiro, lançando mão da subjetividade e da retórica literária que a obra científica tinha por costume banir.

Debaene centrou sua análise em três casos representativos de três motivos diferentes para a incorporação da subjetividade "literária" ao discurso científico: "Os Queimadores de Homens" ("Les Flambeurs d'Hommes", Berg International), de Marcel Griaule; "África Fantasma" (trad. André Pinto Pacheco, Cosac Naify), de Michel Leiris, e "Tristes Trópicos" (trad. Rosa Freire d'Aguiar, Companhia das Letras), de Claude Lévi-Strauss.

Quando surge a antropologia, a literatura de viagem e a comercialização do exótico gozam de amplo sucesso junto ao público leitor. É preciso se diferenciar da vulgaridade não científica do gênero. E a tradição positivista vai exercer sua influência sobre os etnólogos franceses.

"Os Queimadores de Homens", que relata em terceira pessoa, como se narrasse as aventuras de um personagem de romance, o trabalho etnográfico e linguístico de Marcel Griaule na Etiópia, entre janeiro e junho de 1929, é uma reação e uma compensação, por vezes canhestra, segundo Debaene, à camisa de força do discurso positivista que o próprio autor se impunha em seu trabalho científico, em nome da objetividade.

CIÊNCIA VIVA

O problema é que a etnografia surgia como uma "ciência viva". E, a seguir os preceitos positivistas, o antropólogo corria o risco de transformar o objeto vivo de sua análise e descrição em peça morta de museu.

Herdeiro do Iluminismo e do positivismo francês, Griaule se confronta com o dilema de se distanciar do diletantismo dos escritores viajantes e restituir, ao mesmo tempo, a atmosfera e a vida da sociedade estudada, sob o risco de ser acusado de retórico. Seu livro é uma forma híbrida, a maneira nem sempre bem-sucedida que encontrou para lidar com as contradições de uma ciência em busca de identidade, tentando reconstituir a vida de um objeto do conhecimento que só existe vivo.

O caso de Leiris é diferente. O autor vinha do movimento surrealista. E, como os surrealistas, idealizava uma vida mais verdadeira, para além das convenções, inclusive artísticas. É isso o que ele vai buscar na antropologia. Uma arte e uma ciência mais verdadeiras, mais vivas.

E, como Lévi-Strauss, logo vai entender que a premissa da alteridade, que sustentava o exotismo da literatura de viagem, estava errada. Por uma razão muito simples: ela era um correlato da dominação sobre as sociedades não ocidentais. Além de criar uma aporia para o conhecimento: o discurso da alteridade é tautológico, pois ou o objeto do conhecimento é outro e é incognoscível, ou é cognoscível e já não pode ser outro. Não dá para conhecer um objeto em sua alteridade absoluta. O "adeus à viagem" do título do livro de Debaene significa uma recusa das ilusões do conhecimento aventureiro e glorioso dessa alteridade idealizada.

PARADOXO

Por trás dessa reflexão, havia a esperança e a intuição de que a literatura talvez pudesse lançar pontes sobre esse paradoxo, por meio de um outro modo de conhecimento.

É o que Leiris vai tentar com "África Fantasma", e Lévi-Strauss com "Tristes Trópicos". Os próprios objetos da violência do conhecimento ocidental (os indivíduos das sociedades indígenas no Brasil e na África) teriam, segundo esses livros, o poder revelador da insuficiência desse mesmo conhecimento.

Em "Tristes Trópicos", sob influência de Proust, Lévi-Strauss toma como modelo a comparação do diverso e a associação do extemporâneo, revelando a literatura como um modo de conhecimento possível, em que o sujeito (o autor) passa a ser o pivô --pela memória, pelas sensações-- das oposições de objetos heteróclitos, um "conhecimento total" em oposição ao conhecimento das partes, típico da análise científica.

HISTÓRIA

Mais que isso, o antropólogo mostra que não é possível se furtar à história e à sua violência (representada pela perda da diferenciação e a tendência à homogeneização das culturas, que faz todo o sistema entrar em entropia). E aí fica claro que tampouco há redenção proustiana. Não pode haver redenção nem mesmo pelo sensível e pela imaginação, já que nada detém o curso da história (no caso, o desaparecimento das civilizações indígenas).

Por isso, é preciso recorrer a modos de articulação entre a expe-riência e o saber. Ou seja: "O 'segundo livro' não é uma condenação da ciência ou uma compensação das suas insuficiências, mas o relato da experiência subjetiva que a tornou possível, ou o relato da construção do objeto teórico, ou uma combinação dos resíduos que todo empreendimento do conhecimento deixa para trás".

Nesse sentido, "Tristes Trópicos" seria mais propriamente um "primeiro livro", pois anuncia a obra por vir de Lévi-Strauss, cria a possibilidade de apreender o mundo pela lógica e pela correspondência das sensações, abrindo o caminho para os clássicos que vêm em seguida, como "O Pensamento Selvagem" (Papirus) e "O Cru e o Cozido" (Cosac Naify).

ETNÓGRAFO GLORIOSO

O antropólogo procura um novo humanismo, renunciando à ideia de viagem como busca da alteridade e à "mitologia do etnógrafo glorioso" representada no trabalho de campo. Denuncia a ilusão de um sujeito que se constitui pela expe-riência, a ilusão de um homem que domina a natureza. Rompe com a tradição do Iluminismo francês para ir buscar inspiração no espírito renascentista de Montaigne.

Fica claro, a partir daí, que a questão do livro de Debaene é literária, mas pelo viés do sociólogo. Professor na Universidade Columbia, ele convive de perto com o vale-tudo dos estudos culturais e com o clichê pós-moderno de que a ciência também é um discurso de ficção (ideia sedutora, que encontrou terreno fértil nas universidades americanas).

Ao mesmo tempo, conhece bem a herança que a radicalidade do pensamento de Barthes, Derrida e Blanchot deixou para a literatura francesa. E vai combater nas duas frentes: tanto a ideia de que a ciência é uma forma de ficção, como a soberba de uma literatura que se recusa a se submeter à história e às ciências humanas. "Tristes Trópicos" será o seu modelo.

SILÊNCIO

A disputa que opunha, antes da Segunda Guerra, ciência social e literatura pela posse do saber sobre o homem vai passar, nos anos 60, com Barthes, à querela sobre a própria possibilidade desse saber. Como Blanchot e Derrida, Barthes vai se fazer porta-voz de uma literatura intransitiva, na qual "só o silêncio 'se fala'".

Uma literatura que se define como um saber em si, autônomo, irredutível aos recortes da análise social e histórica. Não é por acaso que a preciosidade do estilo e a meditação moral de "Tristes Trópicos" não encantam Barthes. Ainda mais num tempo em que Beckett é o paradigma literário.

O pensamento de Barthes, de Derrida e de Blanchot terá enormes consequências tanto para a literatura francesa --que, de repente, se vê imobilizada diante de um modelo teórico genial, mas cuja consciência cria um impasse para a criação autoral-- quanto para as chamadas "humanidades" das universidades americanas.

A literatura anglo-saxã, por sua vez, mal vai tomar conhecimento do assunto, saindo ilesa para impor sua hegemonia de mercado, com a crença renovada no realismo psicológico.

VÍCIO

É contra o impasse que Debaene investe. Para ele, o clichê pós-moderno segundo o qual o discurso científico é uma ficção entre outras apenas reitera a dicotomia entre ciência e literatura, reafirmando a oposição entre objetividade e subjetividade. Para escapar ao vício do esquema, propõe uma antropologia das ciências, que leve em conta tanto o fato social e cultural como a determinação das psicologias individuais.

Ao mesmo tempo, exorta a literatura a descer do pedestal de autonomia e irredutibilidade, onde permanece pairando como um discurso ensimesmado, sem objeto. Quer voltar a submetê-la à história, inseri-la no contexto histórico.

É o que se realiza em "Tristes Trópicos", segundo Debaene. Aí, o "segundo livro" significa a articulação entre a experiência vivida e o discurso do saber, levando a cabo, com a incorporação da subjetividade "literária", a empreitada inacabada do trabalho de campo, que se sustentava sobre bases falsas, como a busca pela expe-riência de uma alteridade pura e preservada.

O que "Tristes Trópicos" permite ao seu autor é "explorar os limites de uma subjetividade historicamente e culturalmente constituída". Passa a ser, assim, "um tributo pago pelo etnógrafo pela violência de ter querido constituir outros homens em objetos".

Fonte: Folha de São Paulo